sexta-feira, 25 de março de 2011

A senhora do tempo.

E porque achava que felicidade era defeito e não possibilidade, ela vivia a trancá-la em seu peito, como prendia aquele canário azul dentro de uma gaiola apertada no fundo do seu apartamento.

E porque acreditava que a vida não era nada mais do que uma grande bobagem salpicada por momentos de vã esperança, ela vivia a resmungar pelos cantos, agindo como se não houvesse mesmo sentido em abrir a gaiola, já que o seu velho canário, há muito preso por pequenos ferros, nunca bateria as próprias asas.

Ela realmente só pensava em bobagens como ele vivia lhe dizendo. Ela não sabia mesmo ver, preferindo procurar dias de chuva em meio às previsões da metereologia. Ela viva a se cercar de receios para não justificar aquela vontade de gargalhar bem forte e demonstrar ao mundo que sua felicidade não era excesso, apenas uma forma viva de demonstrar o sentido de tudo.

E porque acreditava cegamente na relatividade, não aceitava a permanência dos dias de sol, já que, sem demora, grandes tempestades e tormentas assolariam sua cidade. Ela podia até entender porque ele a deixara, porque se cansara de ouvi-la resmungando aos quatro ventos, incitando a chuva forte que batia no telhado e os trovões que lhe gelavam os ossos. Ela provocava a vida como se a intimasse constantemente para a guerra e se armava mesmo quando nenhuma nuvem escura se mostrava em toda a extensão do horizonte azul.

E por isso mesmo, o viu arrumar suas malas, seus pertences, seus livros e cd´s, o observou enquanto recolhia o shampoo anti-caspa e aquele sabonete que perfumava sua pele, aquele que ela beijava com louvor, sorrindo em meio ao aroma que sua pele exalava ainda úmida.

Ela vivia a resmungar contra a grama verde do vizinho, esquecendo-se de molhar as próprias plantas, de alimentar o seu canário trancado na gaiola de ferro que seguia com a porta aberta e ele não se despedia.

E por acreditar cegamente que a chuva era que o prendia, o canário continuava ali, batendo suas asas na apertada gaiola de ferro sem saber, ingenuamente, que a tempestade que se formou era um mérito dela, que vivia a chamar para si as piores previsões.

Ela o viu ir embora, prolongando a tempestade que a metereologia previu e aconteceu, esnobando o débil pássaro que ali permanecia, vingando a maldita felicidade com sua tristeza, já que ela estava muito bem, obrigada.

E por não acreditar em si mesma, vivia a resmungar pelos quatro cantos com saudade do seu cheiro, da sua presença e daquela forma toda dele de fazê-la sorrir em qualquer momento, com aquela deliciosa massa que ela preparava enquanto ele escolhia um vinho, das noites em que os dois conversavam no escuro, escolhendo o nome dos filhos, entrelaçando os dedos das mãos e tricotando juras de amor que ao nascer do sol se tornavam realidades apaixonadas de dias frutíferos.

E ela, por não acreditar em juras, o viu partir confirmando o que sempre soube: não o merecia, um dia o perderia e nunca mais se livraria daquela chuva maldita que o senhor do tempo avisou na TV.

Ela o viu partir e não se despediu, nem ao menos lhe disse adeus e jogou fora tudo o que lhe lembrava ele, deixando o apartamento vazio e só. Tudo o que restou nos seus metros quadrados foi ela, sua chuva e aquele pássaro burro que não sabia mais bater as próprias asas.

Então, quando mais um dia raio sem sol, ela percebeu que o pássaro se fora. E porque não acreditava mais na própria sorte, partiu caminhando a chamar o canário que finalmente encontrou sua asas.

E então, por acidente, pareceu ouvir os gritos por socorro, abrindo seu peito, segurando seu guarda-chuva até que a felicidade, sem rancor, se aproximou. Juntas dançaram uma música enquanto o objeto jazia moribundo em uma poça e os pingos de chuva molhavam sua face que, ainda assim, sorria.

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