sábado, 26 de junho de 2010

dois andares abaixo do meu

"Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a maioria de seus amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes que tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela tinha bens que poderia ter vendido quando ficou restrita a uma renda que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha mais saúde para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem caminhar até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou pagar a conta de luz ou qualquer outra. Lentamente os fios de sua vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando percebeu que precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era capaz de andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua miséria. A doutora não queria morrer, só não tinha forças para viver neste mundo.

Por um tempo fiquei acordada pelas madrugadas, dormindo nas auroras, aterrorizada com as vidas desconhecidas abaixo e acima de mim, com os socorros que eu não sabia que precisava prestar, com o monstro de olhos abertos em mim. Devagar, comecei a pensar nas minhas escolhas. E agora tento aprender a amar melhor, para além das paredes de meus metros quadrados de mundo, mais iguais às dela do que eu e todos gostaríamos."

Eliane Brum

foda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário